Baile Perfumado Revisita Lampião Parte 2 Por: Veronica Daniel Kobs



Da fama ao caos: o outro lado do mito Como mito, História, documentário e fazer cinematográfico estão interligados pela construção, o convite dos diretores é para que o espectador, observando como os cangaceiros e Abrahão planejam as cenas e posam para fotos, pense no personagem histórico como alvo da construção e da manipulação que orientam a produção de qualquer discurso. O fotógrafo do filme constrói ou forja um Lampião que se opõe aos inúmeros Lampiões dos boatos, das notícias de jornal, etc. Em tom de homenagem e usando a obra de Benjamin Abrahão e as reflexões sobre fazer cinema (especificamente, documentário), Baile perfumado é claro em seu recado: não há um Lampião verdadeiro.

Dessa forma, o caráter fixo do conceito de identidade cede espaço à fluidez e à mobilidade, quando as formas engessadas do passado, depois de resgatadas, tornam-se vivas, no diálogo com o presente. Stuart Hall relaciona esse processo ao desconstrucionismo, que “coloca certos conceitos-chave ‘sob rasura’”. (HALL, 2003, p. 104). Tal atitude, que relativiza e desestabiliza uma ideia já pronta, comprova a natureza metalinguística da recuperação de um símbolo, bem como atesta a duplicidade da representação tomada de empréstimo, que pode ser definida como “uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não podem ser sequer pensadas”. (HALL, 2003, p. 104).

Stuart Hall simplifica a questão da retomada e da associação entre passado, presente e futuro, através de um jogo de palavras: roots e routes, porque, muitas vezes, precisamos voltar às raízes, para (re)definirmos nossas rotas. Os desvios aumentam, quando os símbolos são revisitados e reinterpretados, muito tempo depois. Entretanto, aumentam também as perspectivas de análise. 


A transformação é inerente ao resgate, mas, ao mesmo tempo, fica assegurada a permanência do que é típico, porque “este elemento da tradição subsiste, de forma reelaborada”. (ORTIZ, 1994, p. 140). Enquanto servir para esse fim, o típico garantirá sua sobrevivência. A retomada acaba sendo um teste para a abrangência e a atualidade dos símbolos produzidos no passado e a simples escolha por esse ou aquele já é meio caminho andado, porque a associação de um símbolo “antigo” a um contexto inteiramente novo é prova suficiente da pertinência de seu significado. Assim, autofagicamente, a cultura vai consumindo e modificando os símbolos que ela própria produziu. 

Em parte, essa tendência à retomada parece uma forma de buscar uma verdade oculta, como se ela de fato existisse e pudesse ser achada por trás do mito, mas não é isso. A brincadeira que confronta um rei do cangaço humano com aquele outro, violento e sanguinário, tem o propósito de mostrar a importância da imparcialidade, no julgamento de um mito, porque, como tal, ele não passa de uma construção, ou seja, não é real, e, agora, vem o motivo mais importante: deixar claro que ninguém sabe, nem nunca saberá como era o Lampião de verdade. Uma verdade que seja única e incontestável não existe, ela é construída e, obviamente, serve aos propósitos de quem a produziu, seja na História, na Literatura ou no Cinema. Linda Hutcheon relativiza o status da verdade, comparando História e arte literária, nesta passagem: O que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos ensinou é que a ficção e a história são discursos, que ambas constituem sistemas de significação pelos quais damos sentido ao passado (...). 

Portanto, o pós-moderno realiza dois movimentos simultâneos. Ele reinsere os contextos históricos como sendo significantes, e até determinantes, mas, ao fazê-lo, problematiza toda a noção de conhecimento histórico. (HUTCHEON, 1991, p.122) Sendo assim, por mais que pareça óbvio e ululante, a verdade é uma questão de ponto de vista, pois o sentido de um mesmo objeto de análise é construído de modo distinto, pela ação de diferentes sujeitos, acarretando interpretações também variadas. Por isso, o documentário não deve e também não pode retratar o real com nitidez. A extrema artificialidade dos takes e das fotos da obra do personagem Benjamin Abrahão (aqui, a referência não é aosfilmes propriamente ditos, mas às cenas que mostram o ator Duda Mamberti representando Abrahão e dando início às filmagens de Lampião e seu bando) é proposital, para demonstrar, veementemente, que documentário não é sinônimo de “registro natural”: “[…] cinema documentário é discurso (leitura) produzido, e não reprodução de uma ‘realidade’”. (CESAR, 1980, p. 56). 

A representação e a preparação meticulosa da gravação são potencializadas, em Baile perfumado, no momento em que Lampião, perguntando a Abrahão sobre a finalização do filme, recebe a proposta de fazer uma grande encenação. De início, Lampião recusa a ideia, o libanês insiste e, na sequência, a história mostra o ataque do bando à casa de Zé do Zito. O filme de Abrahão é finalizado nesse momento, promovendo uma relação de complementaridade entre o material produzido por ele e Baile perfumado.


Nessa hora, uma filmagem interfere na outra, recurso que reorganiza o processo de produção de significado e sela a parceria dos cineastas, já que o objetivo era um só: contribuir com mais uma peça, no imenso mosaico de leituras que existe sobre Lampião e sobre o cangaço no Brasil.
É comum que, em um processo de retomada, o discurso-base fique em segundo plano, transformando-se na sombra do discurso que está sendo construído, mas, no filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, as coisas acontecem de modo diferente, pela simples razão de Baile perfumado privilegiar a metalinguagem. Esse recurso, por exigir total transparência, já que, desde o começo, explicita a função autoral de um personagem (do
protagonista, na maioria das vezes) e a intenção de criar algum tipo de arte, através da reflexão sobre características que lhe são fundamentais, permite que ambos os discursos, o antigo e o novo, apareçam em primeiro plano e, aproveitando-se disso, na produção contemporânea, os diretores, apropriadamente, conjugam os filmes, como se um fosse extensão do outro. 

Tal conjugação volta a ser utilizada, de modo enfático, no final, quando, depois do confronto com a volante, Lampião e seu bando são mostrados, mas através das imagens feitas por Abrahão, na década de 30. Entretanto, a justaposição exacerba-se ainda mais, quando, no momento seguinte, o Lampião ficcional (Luís Carlos Vasconcelos) imita o Lampião real e aparece se perfumando, como em uma das cenas mais famosas dos filmes de Benjamin Abrahão. Nesse ponto, “a identificação criada até aquele momento entre o espectador e o filme se quebra, pedindo um novo ajuste no mecanismo de participação/identificação”. (YAKHNI, 2009, p. 7).


A complementaridade não é, então, um desafio apenas para os diretores, pois ela surpreende o espectador, exigindo que seja assumido um posicionamento diferente diante do filme, porque, se, inicialmente, fica bem clara a separação entre o Lampião real e o ficcional, no instante seguinte exige-se que o espectador tome um pelo outro. A fronteira nítida e bem delineada que geralmente impedia o contato entre realidade e ficção é diluída e evidencia “a rejeição das pretensões de representação ‘autêntica’ e cópia ‘inautêntica’, e o próprio sentido da originalidade artística é contestado com tanto vigor quanto a transparência da referencialidade histórica” (HUTCHEON, 1991, p. 147). 

Essa espécie de continuidade entre os filmes desempenha um papel muito maior, quando se percebe que a intercalação do documentário do Abrahão real, no filme Baile perfumado, legitima o discurso que o incorpora. Na verdade, para alcançar esse efeito, fazer um filme baseado em personagens históricos já constituía o primeiro e grande passo, de modo que a inserção de trechos da obra de Botto apenas acentua a legitimação. Através do paralelismo entre ficção e História, cria-se uma narrativa em espiral. Apesar de as semelhanças serem nítidas, a distância entre uma história e outra é evidente: “As imagens captadas por Abrahão em preto e branco são um documento de uma realidade que existiu e o filme a que se assiste é uma reconstituição desta realidade.” (YAKHNI, 2009, p. 7). E, para completar a metáfora da espiral, em torno da história do passado, registrada nos filmes de Botto, e da história do presente, gravitam inúmeros elementos, que as tornam mais amplas, justamente porque passam a ser associadas a questionamentos que jogam nova luz sobre os fatos, motivando novas leituras. 

Percebe-se, pelas colocações acima, a completa simetria que existe entre o intuito das obras de Abrahão e de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, mas há ainda outros exemplos que comprovam essa extrema afinidade. Em Baile perfumado, Lampião também é libertado do peso imposto pelo mito. O rei do cangaço interpretado por Vasconcelos é sorridente, vaidoso, adora promover festas e nunca deixa de ajudar um amigo. O mesmo tom é usado para retratar Benjamin Abrahão. No filme, o fotógrafo não é absolutamente sério e apenas enaltecido pelo imenso acervo histórico que deixou como legado. Abrahão é um homem comum, namorador e com uma forte queda por mulheres casadas. Diante disso, é como se houvesse uma concordância implícita dos diretores de Baile perfumado em relação à concepção que Benjamin Abrahão Botto tinha da arte e do gênero documentário.

Em síntese, pode-se afirmar que Baile perfumado, em vários momentos, utiliza a técnica da duplicação ou do decalque como forma de apologia ao trabalho de Botto e ao Lampião concebido por ele. Sem dúvida, esse processo é possibilitado pela representação de parte da vida de um personagem histórico e, novamente, pela metalinguagem, porque, tanto no filme de Benjamin Abrahão como no filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, “a realidade é apresentada como resultado da mediação da tecnologia como possibilidade de registro permanente”.

Esse “registro permanente”, por ligar-se fortemente ao documentário e à biografia, leva-nos à constatação de que Baile perfumado não mostra só o fotógrafo filmando o diaa-dia de Lampião e dos outros cangaceiros. O filme é também um registro biográfico de Benjamin Abrahão, observação que potencializa o efeito de duplicidade (ou, nesse caso, triplicidade). A história do fotógrafo é o fio condutor de Baile perfumado, tanto é que “a amarração da narrativa é dada pela sua vivência dos fatos”. (YAKHNI, 2009, p. 1). A voz de Abrahão, em off, está presente já na primeira cena do filme, no velório de padre Cícero. O fotógrafo aparece familiarizado ao religioso responsável por sua ligação com Lampião. Em seguida, é dado destaque ao confronto entre os cangaceiros e a volante. 

Com essa apresentação cortada ou justaposta, estabelece-se a conexão entre os personagens principais da história. A narração de Abrahão faz interferências constantes, no filme, mas é interessante notar que os diretores não primam pela mera combinação entre imagem e fala. A participação do fotógrafo como narrador não é ilustrativa. Ao contrário disso, ela amplia e completa a imagem. Em vários momentos, paralelamente à voz em off, o personagem faz anotações em uma caderneta. Esse fato tem grande relevância para a conjugação de Baile perfumado com o documentário. Tanto no cinema documental quanto na ação de tomar nota, o importante é o registro, atitude que se opõe fortemente à fluidez e à transitoriedade das coisas. Benjamin Botto, no filme, considera-se um inquieto e, como tal, queria mudar o mundo.

A princípio, qualquer tipo de registro histórico parece ser relacionado mais à permanência do que à mudança, afinal, depois de fazer parte da História, o fato fica ali, imóvel, até que surja alguém que retome aquele fato histórico e motive novas percepções, novas formas de leitura e compreensão. Benjamin Abrahão Botto conseguiu seu intento. Ele registrou um pedaço da História de Lampião e seu bando, que mudaram o mundo de muitos, e, muitos anos depois, ajudou Paulo Caldas e Lírio Ferreira a mudar o mundo construído em torno do mito do rei do cangaço. Em Baile perfumado, Lampião não deixa de ser mostrado como mito. Ele apenas tem enfatizado seu outro lado. O mesmo jogo de luz e sombra perpassa o personagem do fotógrafo. Comumente, Abrahão é lembrado pelo material iconográfico riquíssimo que produziu, mas pouco se fala sobre sua luta para pôr em prática seu projeto artístico-histórico. Todos comentam o que ele fez, mas, afinal, quem foi ele mesmo?


Baile perfumado sugere uma nova perspectiva, para desinvestir o mito da autoridade que, habitualmente, esse carrega, a fim de possibilitar uma revisão. No entanto, essa mudança só é possível, pela estrutura escolhida para a apresentação da história. Nesse plano mais formal, destaquem-se o modo indireto de reacender a discussão sobre o papel do cangaço, na sociedade brasileira, e a associação entre imagem e som, inclusive com o privilégio da música, detalhe que não pode passar despercebido, já que a trilha sonora inclui a participação dos principais nomes do movimento mangue beat. Na primeira cena de Baile perfumado em que aparecem Lampião e seu bando, o som de Chico Science é indício valioso do que está por vir. 

A “batida” do mangue dialoga com a filosofia do cangaço, no que se refere à luta social, contra a miséria e pela esperança de mudança, e dialoga com o filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, pela valorização do aspecto regional e da cultura de raiz, para “modernizar o passado”, e pela fusão de estilos e elementos, que, no filme, fica muito bem representada pela alternância constante entre passado e presente. O híbrido e o novo são celebrados, mas sem esquecer o tradicional. Dentre os nomes que compõem a trilha sonora de Baile perfumado, Fred Zero Quatro, com a banda Mundo Livre S/A, e Chico Science, à frente da Nação Zumbi, estabeleceram um novo conceito pop.

A relação entre modernidade e tradição foi explicitada, através do símbolo do movimento: uma antena parabólica enterrada na lama dos manguezais. Lançado em 1992, com o manifesto Caranguejos com cérebro,o mangue beat exigia “a percepção da diversidade cultural existente” e privilegiava “a fusão de ritmos, maracatus, repentes e cantigas de roda com rock, rap e dance music”. (LEAL, 2006, p. 3). Até aqui, há provas suficientes da convergência entre Baile perfumado e o movimento pernambucano dos anos 90, mas a prova irrefutável associa-se mais ao tema que à estrutura: A cena mangue traz também um resgate de manifestações folclóricas de Pernambuco e nordestinas, tomando como referências figuras históricas como Zumbi, Lampião e Antônio Conselheiro, numa clara tentativa de resgate da identidade histórica. (LEAL, 2006, p. 3).

Aí aparece Lampião, e não à toa, pois, se o objetivo dos “caranguejos com cérebro” era fazer revolução, nada melhor do que evocar alguns dos ícones revolucionários importantes de nossa História. Aliás, várias retomadas como essa, ao longo de décadas, acabaram contribuindo para a construção da heroicidade de alguns personagens históricos pelo movimento mangue beat. Ressalte-se que o apelo popular permitiu a reescrita da História, afinal, de “subversivos”, “revoltosos” ou “marginais”, todos os exemplos aqui citados foram conquistando, aos poucos, o reconhecimento oficial. Dessa forma, hoje, os “heróis” do passado interferem no presente e, em troca, o presente lança um novo olhar sobre o passado, o que equivale, respectivamente, a outro movimento de reciprocidade: “da lama ao caos” e “do caos à lama”.

Verônica Daniel Kobs

Doutora em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2009); Mestre em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2000); Licenciada em Letras Português-Latim pela Universidade Federal do Paraná (1997); Professora do Curso de Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade; Coordenadora do Curso de Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade; Professora do Curso de Graduação de Letras da FACEL; Consultora e língua portuguesa e linguagens da RPC TV e da Ó TV; Membro de grupos de pesquisa credenciados junto ao CNPq; Autora de diversos artigos sobre Literatura e Estudos Interartes; Autora de livros didáticos de Língua Portuguesa publicados pela editora Iesde Brasil S. A.; Atualmente, está desenvolvendo trabalhos que abrangem as áreas de Literatura, Cinema e Pintura, enfocando as relações entre palavra e imagem e as questões de identidade e alteridade.

Fonte:http://www.todasasmusas.org/03Veronica_Daniel.pdf

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