O Padre José Kehrle e a Outra História de Lampião Por:Rangel Alves da Costa

Padre José Kehrle

Lendo uma postagem do professor e pesquisador Geziel Moura, mais precisamente alguns anexos da revista Manchete (nº 1.045, de 29 de abril de 1972, págs. 154 a 157), deparo-me com algumas informações importantes repassadas pelo padre José Kehrle ao repórter Ricardo Noblat. Na reportagem intitulada “Lampião morreu envenenado”, surgem logo algumas afirmações já conhecidas e outras que podem ser contestadas com força na pena. Ou assim se faz ou revirada estará a saga de Lampião e a própria história do cangaço.
Diz o religioso que Lampião não morreu num tiroteio, foi envenenado juntamente com os cangaceiros que o acompanhavam na ocasião. Diz ainda que Lampião era um homem profundamente religioso. Todas as manhãs, bem cedo, se afastava do grupo e lia seu breviário. Informa ainda que a polícia não tinha interesse em prender Lampião. Soldados e oficiais, além do salário, recebiam também uma diária especial, se empenhados na caça ao cangaceiro. Portanto, quanto mais demorassem a encontrá-lo tanto melhor para eles. E também: Lampião sempre foi protegido por chefes políticos e grandes donos de terras. Deles, em troca de determinados serviços, Lampião recebia armas e mantimentos. Até a polícia, às vezes, fornecia munição.

Manoel Severo e Rangel Alves da Costa

Sobre o conluio entre Lampião e as forças policiais, pontua o religioso: “Quando as tropas policiais tinham ciência de que Lampião estava perto, o oficial em comando mandava tocar a corneta, retardava a marcha, e isso dava tempo suficiente para que os cangaceiros fugissem”. E um relato surpreendente, ainda que muitos historiadores já tenham afirmado acerca da amizade e entre Lampião e o Tenente João Bezerra: “Revelou-me que o tenente era amigo de Lampião e que, muitas vezes, ia jogar com ele no seu esconderijo, em terras do pai do governador de Alagoas”. Segundo o padre, tal revelação fora feita por Vicente, antão ordenança do tenente.

Acerca do envenenamento, afirma o padre Kehrle: “Conhecia bem a rotina da casa e sabia que, todos os dias de manhã, uma mulher levava um pote de água de beber para os cangaceiros. Em troca de dez contos de réis, a mulher depois de muito vacilar, diluiu na água o veneno que o tenente lhe dera. João Bezerra cercou a casa, viu quando Maria Bonita levou o pote para dentro, e esperou mais um pouco. Entrou sozinho quando ouviu gritos: os cangaceiros e Lampião agonizavam envenenados. O tenente então deu um tiro na cabeça de Maria Bonita e os soldados invadiram a casa, roubaram o dinheiro dos cangaceiros e cortaram-lhes as cabeças”.


À época da reportagem, o padre Kehrle, contava com oitenta e um anos. Contudo, por mais conhecimento de causa que tivesse, pois se autodenominado confessor do rei cangaceiro antes de o mesmo entrar no cangaço, bem como gozando de tamanha intimidade que certa feita, ferido, o das caatingas afirmou que só se entregaria à polícia na sua presença, não se pode, infelizmente, creditar como verdadeiras todas as suas narrativas. Ademais, repassa outras informações que contrastam totalmente com os alfarrábios da história.

Numa palavra: se o padre Kehrle estiver com a verdade, grande parte da história acerca de Lampião está sendo contada e recontada de forma equivocada, senão mentirosa. Prefiro confiar em pesquisas, em antigos relatos oriundos de fontes fidedignas (em muitos casos e sobre muitas situações), a abraçar como verdadeiras algumas assertivas, perceptivelmente surgidas para afamar o informante. Neste sentido, diz a reportagem que o padre Kehrle é o maior testemunho vivo da história do cangaço. Ora, o ano era o de 1972 e nesta época muitos ex-cangaceiros continuavam vivos, a exemplo de Sila e Adília.

Angico

Na verdade, de fácil percepção é o fato de que o religioso nada mais pretendeu do que ganhar escopo de importância no mundo do cangaço. Dizia-se, então, acusado pela polícia de proteger Lampião e seu bando e de ter feito uma grande ação evangelizadora em meio aos homens das caatingas. Não obstante isso, seu relato acerca das vinditas de sangue dos Ferreira não condizem com a verdade histórica. Acaba transmudando toda a saga familiar para Alagoas e deixa de citar as raízes da violência ainda em Pernambuco, como se menosprezasse as reais sementes dos ódios e das violências.

Não nos parece veraz a narrativa acerca do envenenamento. Cita uma casa onde a morte se deu, mas não cita sequer o local onde estava escondido o agrupamento cangaceiro. Era como se o bando dependesse apenas de um balde de água para matar a sede. Como o balde entregue naquele dia estava envenenado - e muita gente matou a sede ao mesmo tempo -, então houve envenenamento conjunto. Noutras palavras, era como se o leiteiro entregasse o leite envenenado certa manhã e grande parte da casa morresse por causa disso. Ademais, no relato não há lugar para o Angico, para o cerco na madrugada, para o curto tiroteio, para o sangue derramado e a fuga desesperada de cangaceiros.

Também não condiz com a verdade histórica a citação segundo a qual as forças policiais perseguiam de mentirinha o bando Lampião. A acreditar nisso, o Fogo do Maranduba teria sido a mais perfeita encenação entre cangaço e volante. Muito mais teria para contestar acerca das palavras do padre, mas creio que a própria reportagem cuida de definir bem o informante: “Uma pausa. Padre Kehrle vai tirar o demônio do corpo de uma mulher que chora há três noites”. E cura. Mas não a História.
Rangel Alves da Costa
Poeta e cronista

3 comentários:

Unknown disse...

dia 17-071 -1997 na fundaçaõ joaquim nabuco havia um encontro cujo assunto era a morte de lampiaõ.um cidadaõ do pajeú interpelou a ex cangaceira cila sobre possibilidade de envenenamento na morte de virgulino,eu ouvi e vi a resposta: naõ houve veneno,o que houve é que a volante tinha [quatro metralhadoras]mais poder de fogo e acrescento houve a determinação do ''estado novo''[getulio vargas].presentes neste simpósio o ex cangaceiro inacio de loiola estava junto com cila na hora do tiroteio de angicos.estive com o tenente pompeu aristide de moura pertencente força volante que afirmou ser esta versaõ mais procedente pelo testemunho de cila e candeeiro[inacio de loiola],espero ter contribuído. muita paz .

Anônimo disse...

Meu voto com certeza vai para o Pe. Kehrler. Acreditar em uma política inventada e falida como sempre foi a história da nossa República, a faça me um favor....

renanthesecond2 disse...

O artigo não esclarece como essa informação chegou aos ouvidos de padre Kehrle. Pode não ser verdadeira, mas acredito que ou ele falou de boa fé ou, como muitas vezes acontece na imprensa, as falas dele foram distorcidas.